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Biodiversidade e Biopirataria

O Brasil reconhecidamente tem uma das maiores biodiversidades de todo o planeta, representada por um conjunto de organismos terrestres e aquáticos, de águas continentais, costeiras e oceânicas. Esta biodiversidade estrutural é suportada por uma ampla base de diversidade genética que gera, também, uma biocomplexidade funcional de altíssima importância para o planeta Terra, pois regula ciclos, estabelece padrões de distribuição de plantas e animais e, portanto, constitui-se em um patrimônio biológico, genético, e econômico, fundamental em praticamente todas as regiões do país. Da Floresta Tropical Úmida à Mata Atlântica, aos cerrados e caatinga, ao Pantanal e Lençóis Maranhenses, às regiões de mangue e praias, às zonas costeiras, bacias e estuários, o Brasil tem uma enorme massa de organismos e um espetacular e diversificado processo evolutivo, constituindo-se em um imenso e formidável laboratório.

É evidente que este patrimônio pelo seu valor científico e suas características de biodiversidade única, tem gerado enormes interesses no Brasil e no exterior. Estes interesses, alguns genuinamente científicos, outros puramente econômicos e comerciais, já despertam atenção. Há muito tempo temos enfatizado que a biodiversidade no Brasil tem um enorme potencial para acrescentar conhecimento à ciência, mas é também um acervo econômico de alguns trilhões de dólares pelo valor que pode ser gerado por descobertas científicas de interesse comercial (fármacos), ou pela simples comercialização de plantas e animais. Para disciplinar esses usos da biodiversidade e coibir a biopirataria, é evidente que algumas ações devem ser encetadas com urgência: o controle do transporte de material para o exterior, o disciplinamento dos usos de material genético no país e no exterior e a adoção de medidas drásticas contra qualquer tipo de atividade clandestina de transferência de material biológico ou genético. Entretanto, essas ações importantes não podem também impedir que a pesquisa realizada por brasileiros no Brasil ou no exterior em consórcio com cientistas de outros países, seja desenvolvida. A prática científica, transparente como ela deve ser, e honrada, e que é utilizada para ampliar o conhecimento deve ser estimulada, e não inibida. Desta forma, pesquisadores do programa Biota-Fapesp, reunidos em São Carlos/SP, em dezembro de 2002, organizaram uma moção com a finalidade de alertar autoridades dos órgãos de controle, de que coletas de material, experimentos com organismos vivos, transporte de organismos, todos com finalidade científica, devem ter tratamento diferenciado daquele de projetos comerciais ou com fins econômicos. Para poder dar continuidade às experiências e projetos de pesquisa é preciso liberdade de ação e capacidade de decisão no campo; a solicitação foi feita no sentido de que houvesse uma distinção salutar e importante, para os dois tipos de procedimentos. Explorar a biodiversidade e o patrimônio genético do Brasil é um dever de pesquisa científica e de todos os cientistas que desejam contribuir para aumentar o conhecimento da humanidade. Esta atividade deve ser preservada, estimulada e protegida, para dar oportunidades e abrir perspectivas. Biopirataria e exploração econômica clandestina e feita sem controle, seja por brasileiros ou estrangeiros, ou em consórcio deve ser punida e coibida. A distinção não é difícil e as autoridades e os sistemas de avaliação de projetos e de fiscalização têm meios para fazê-la. Basta ter competência e capacidade de análise. Isto é o que recomendam e solicitam os pesquisadores que não querem parar suas pesquisas com o tema.

Entre os ingredientes ativos mais importantes para a farmacologia, 70% derivam da biodiversidade ou foram inspirados em substâncias naturais. O que nos faz refletir nas centenas de bilhões de dólares de vendas anuais de medicamentos, uma boa medida do patrimônio contido na biodiversidade. Se lembrarmos que 25% da biodiversidade mundial localiza-se no Brasil, percebe-se a riqueza entesourada nas matas, nos rios e nos pântanos brasileiros.

O IPEA estima o valor da biodiversidade brasileira em US$ 2 trilhões (quatro PIBs nacionais). Entretanto, de que vale esse potencial se não pudermos transformá-lo em benefícios à Humanidade, com retornos aos detentores da biodiversidade? Em especial, como vamos remunerar o conhecimento acumulado ao longo de milênios nas comunidades da floresta e nas tribos indígenas? Como vamos proteger a propriedade intelectual do pajé cujo cromatógrafo é um caldeirão e que, mesmo assim, desenvolveu tecnologia que hoje é expropriada, sem escrúpulos, por multinacionais?

Descrever todos os casos já registrados de biopirataria seria enfadonho, portanto é melhor restringir-se a alguns exemplos. Segundo Gazzoni, um veneno poderoso, chamado curare, utilizado pelos índios não apenas como veneno, mas como componente de sua farmacopéia foi “surrupiado” por uma multinacional que andou bisbilhotando nas receitas dos pajés e levou o curare de nossa biodiversidade e de nosso conhecimento milenar, para ser patenteado lá fora.

Hoje o curare, travestido de relaxante muscular, engorda o lucro da multinacional. E o que dizer da erva do Santo Daime, planta com compostos alucinógenos, que atraiu artistas e curiosos para a seita do santo de mesmo nome? Os índios chamam a planta de “aiausca” e já a utilizavam há séculos, quando a mesma foi patenteada por outra empresa estrangeira. Hoje, os medicamentos dela derivados são comercializados ao abrigo das leis de patentes dos países ricos, sem que caiba qualquer compensação aos verdadeiros descobridores dos seus poderes medicamentosos.

As leis de patentes são muito parecidas entre si, independentemente dos países que as exaram, destinando-se à proteção da inovação gerada nos laboratórios industriais. Conhecimentos milenares, se não foram devidamente registrados, preferencialmente em revistas científicas de larga circulação, não são reconhecidos. A lei americana é explícita ao não reconhecer o conhecimento transmitido através de gerações pela linguagem oral. Isso impede que patentes sejam contestadas com base na prerrogativa de detentores de conhecimento não registrado. Recentemente, a Universidade de Wisconsin solicitou patente para uma substância denominada tumérica, extraída de raízes de plantas, utilizada secularmente como cicatrizante, em toda a Índia. A contestação hindu não teve acolhida pelo Escritório de Patentes dos EUA, que exigiu registro escrito de seu uso como medicamento. O que salvou a Índia foi um de seus livros sagrados (Vedas Upanishads), onde aparecia uma recomendação da tumérica como cicatrizante, escrita na época do descobrimento do Brasil!

Quem investe em inovações tecnológicas sempre é muito cioso da proteção de seus direitos de patentes e de propriedade intelectual. O que faz todo o sentido, sob a óptica da rationale econômica. Raciocinando pelo absurdo, caso não houvesse qualquer tipo de prerrogativa diferenciada ou de direitos do obtentor de uma inovação, não haveria um real estímulo à inovação. Dessa forma, ficaria prejudicada a medicina, a veterinária, a agricultura, a engenharia, a música e qualquer outra forma de manifestação de criatividade, onde fosse imperioso o investimento de risco em inovação. Por outro lado, não se podem imaginar extremos como a negação do conhecimento milenar ou do domínio sobre a biodiversidade, sob pena de utilizarmos uma escala de dois pesos e duas medidas, beneficiando os detentores de conhecimento que possuem “lobbies” poderosos e os melhores advogados, em detrimento das demais formas de descoberta, domínio, uso e apropriação do conhecimento.

182 países assinam Convenção da Biodiversidade

HAIA - Depois de 10 anos de negociações, foi feito um acordo mundial para impedir que fabricantes de remédios e biotecnologia se apossem de conhecimentos sobre plantas medicinais de países em desenvolvimento e depois obtenham lucros gigantescos patenteando os produtos fabricados com tais conhecimentos. Esse acordo foi feito pelos 182 países participantes da Convenção de Biodiversidade, reunidos na sua 6.ª conferência que termina hoje em Haia, na Holanda. Os Estados Unidos são observadores.

A decisão deverá apressar a transformação em lei, com mudanças pelo Congresso, da Medida Provisória (MP) que rege o acesso aos recursos genéticos e da biodiversidade no Brasil. Essa MP é criticada tanto pelas empresas quanto pelas comunidades tradicionais por não ter sido submetida a consultas abertas.
Esse caráter unilateral da MP, em vez de incentivar e regular o uso do conhecimento tradicional para a produção de novos fármacos e fragrâncias, apenas reforçou a suspeita de que companhias farmacêuticas pratiquem biopirataria. Essa suspeita, também presente em outros países, já levou à quase paralisação das pesquisas e a catalogação de plantas potencialmente úteis na América Central e Filipinas, além do Brasil. Esse efeito perverso da MP no Brasil foi denunciado pelo Estado em sua edição de 7 de abril.

Nos termos do acordo, uma parte dos lucros deve ir necessariamente para o país de origem e para as comunidades tradicionais que conhecem as propriedades medicinais das plantas. Além disso, nas parcerias das empresas, instituições de pesquisa e comunidades tradicionais, as compensações a essas últimas podem envolver treinamento, transferência de tecnologia e royalties.

As alegações de biopirataria foram feitas principalmente contra empresas dos Estados Unidos, que em alguns casos patentearam plantas inteiras, embora na maioria dos casos tenham patenteado genes ou os remédios produzidos a partir de determinadas plantas. Como os povos indígenas - que conhecem as propriedades medicinais das plantas há muitas gerações - se sentem fraudados, o acordo introduz o conceito de "consentimento prévio informado", aplicável às companhias que buscam informações dos índios a esse respeito.

Michael Meacher, ministro do Ambiente da Grã-Bretanha, garantiu que o país transformará o acordo em lei para que as companhias tenham acesso a recursos genéticos no exterior e registro de propriedade do que produzirem.
Esse, aliás, é o ponto. Sem o acordo, não há segurança para as empresas do registro de propriedade intelectual dos resultados da prospecção de recursos genéticos em que eventualmente invistam. Sem o consentimento prévio das comunidades tradicionais que detêm o conhecimento original, o registro torna-se viciado aos olhos das leis sobre patentes e propriedade intelectual.

De acordo com tudo o que foi dito até agora, fica a certeza de que o Brasil é um dos maiores reservatórios de biodiversidade do mundo e que, comprovadamente, vem sofrendo com a biopirataria. O que traria benefícios tanto em descobertas quanto em recursos financeiros, tornou-se mais uma das áreas de contrabando brasileiro. E mais uma vez com a presença física de muitos estrangeiros, querendo levar o resto de nossas riquezas.

O Brasil é um país que precisa de melhorias em todas as áreas. Existem muitos fatores o tornariam um dos melhores lugares para se viver, porém toda essa riqueza é totalmente mal distribuída. Se as coisas funcionassem por aqui, as pessoas não entregariam o seu tesouro assim de “mão beijada”. Muito do que sai daqui é facilitado pelos próprios brasileiros. Mas o problema é que muitos deles tem esse serviço como único recurso para sobrevivência. Outros embolsam milhões para fazer “vista grossa” e aí a corrupção mais uma vez se fortalece como a “linguagem brasileira” de se fazer negócio (famoso jeitinho brasileiro).

Geraldo Lopes, 11/11/2004

Referências bibliográficas:

TUNDISI, José Galizia. Biodiversidade e biopirataria. Texto. Presidente do Instituto Internacional de Ecologia.

GAZZONI, Décio Luiz. Biodiversidade e biopirataria. Texto. Engenheiro Agrônomo e pesquisador da Embrapa Soja.

182 países assinam Convenção da Biodiversidade. Disponível em: www.herbario.com.br/biopirat (sem autor). Acesso em 04 Nov 2004.

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